25 de abril de 2010

Cabeça livre

- A água do mar estava...
- Já sei!
- Ai a mãe já te esteve a dizer?
- Já!
- É que estava mesmo...
- Oh pai, já sei!
- É por isso que eu adoro ir para a praia nesta altura!
- Oh pai!
- Não estava quase ninguém! E a água, a água estava...
- Ai, eu já disse que já sei!!
- Então e esses livros? São sobre quem?
- Norton de Matos.
- São bastante antigos. Onde arranjaste?
- Biblioteca de Letras.
- Hum. Cuida bem deles. O mar nesta altura...

A minha casa nem é muito quente. Estar assim, de top e calções, até me dá algum frio. Não me custa pensar, se conseguir reduzir o meu campo de visão a este ecrã.
Mas a minha mãe, ali no jardim, com a cabeça livre e o biqini desapertado atrás para não ficar marca, está a dificultar a minha missão.
Deitou-se na relva, que o meu pai cortou de manhã, e está ali, às 15h, sem medo dos raios ultravioleta. Confia, certamente, no poder regenerativo das suas células ou na magia dos cremes aftersun. Tem tanto calor que amarrou o cabelo e foi buscar um chapéu.
A minha irmã de 12 anos, que até agora tinha estado muitíssimo ocupada a ver as séries do Disney Channel, juntou-se à paródia com uma bola de voléi e os pés descalços.
Olho para as duas e consigo vê-las a espreitar cá para dentro com um olhar cruel. Olham-me, levantam o canto superior direito das suas bocas, e voltam às suas vidas, preocupadas com o sol e com a bola colorida que costumava ser a minha companhia de fins de semana. Cada uma no seu mundinho, lá trocam uma palavra, ou um sorriso de cumplicidade, claramente pensada para me derrubar.
A natureza acordou para me irritar. Iluminada. E a minha família aliou-se a ela.
Nem os pássaros que voam contra a janela da minha cozinha se deixam abater. Caem, levantam, e seguem contentes, com o vento.

A minha irmã decidiu atacar em pico para cima da minha mãe que, noutra altura, ficaria bastante aborrecida, mas a Natureza está tão iluminada e elas têm a cabeça tão livre que só conseguiram rir.

- Não te apetece ir à praia? Está tanto calor!

(Socorro!)