20 de novembro de 2010

Liberdade inquestionável

Fui - mais uma vez - vencida pelas palavras apagadas. Acredito, verdadeiramente, que as forças do mal se alimentaram da minha preguiça e me transformaram numa sombra - viva, mas sem voz.
Enquanto sombra, não fui capaz de reabrir esta caixa de arrumos. Sabia que aquela forma muda de mim me impediria de fazer justiça a tudo o que os meus diferentes sentidos foram - e vão, continuamente - registando. Muitas vezes tentei gritar, mas custava-me o esforço - inútil. Ficava zangada, desiludida por não ser uma destemida guerreira das forças do bem, até ao dia em que decidi desculpar-me: não tenho culpa que me tenham roubado a voz.

Cobarde.
Fui cobarde e apática; deixei-me levar pelo tempo - que correu.

A Ana diz que nestas alturas, em que lhe falha a voz, visita o seu espaço frequentemente, na esperança que ele se actualize sozinho. Acho que foi exactamente isso que eu fiz - mentalmente. Esperei que os meus pensamentos, e todas as experiências em que se baseiam, se organizassem por si. Agora, que ganhei coragem para cá vir dar uma espreitadela, descobri não mais do que uma caixa poeirenta - aparentemente vazia, abandonada, afogada em sujidade.
Pesa-me a consciência.
Coro de vergonha.

Hoje é 20 de Novembro de 2010. Amanhã fazem precisamente dois meses desde que saímos com a mochila às costas; daqui a 13 dias: três meses desde que pus os pés na Cidade Eterna; em menos de um mês volto à Cidade das Pontes para as férias de Natal. Penso sobre isto (regularmente) e estremeço: dá-me a sensação (não muito agradável) que, entretanto, se passou uma vida inteira; vejo, aqui nesta casa, uma realidade nova - revitalizante - que me vai escapando pelas mãos, enquanto lhe toco, de leve, à espera de conseguir agarrá-la.

Os dias que passamos a dormir em viagens de comboio ou em bancos de estação já lá vão há muito tempo e quanto mais penso neles, mais distantes me parecem. Tento descrevê-los, mas as peripécias já me vêm com menos detalhe; surgem-me as imagens, mas até essas já me aparecem um tanto ou quanto desfocadas. Quando, daqui a muitos anos, vier procurar relatos dessa aventura, vou lamentar e ter uma vontade desmedida de matar a minha preguiça (e a minha memória de peixe). Valem-me as 2747 fotografias e, essencialmente, vale-me a persistência da Maria, que soube vencer o facilitismo e contou - com bastante minucia - duas mãos cheias de estórias.

Sempre acreditei perceber os estudantes Erasmus: aqueles que cantam aos ventos como a experiência os fez crescer; ou como lhes custa voltar à rotina da vida normal. Acreditei que os percebia, mas a verdade é que não fazia a mais pequena ideia.
Estou na minha sala, da minha pequena casa. Da janela consigo ver a traseira da vivenda do senhorio, toda ela em vidro; vejo meia dúzia de árvores - uma delas cheiinha de romãs, e, lá ao fundo, a sebe de arbustos que delimita o espaço; no parapeito da nossa janela estão duas embalagens de detergentes que usamos para lavar a roupa e entre os postes que suportam o alpendre, cordas - com um (ligeiro) cheiro a cavalo - que improvisamos como estendal. Chove.
Cá dentro não faz frio - talvez seja do calor humano, ou do café e torradas que aqueci há uns minutos. Um estranho diria que está tudo um pouco desarrumado... um estranho; porque este é verdadeiramente o nível máximo de organização que conseguimos manter. Há um monte de louça por lavar e, segundo me diz a experiência, é assim que aquela banca vai ficar, pelo menos até que, por necessidade, alguém se aventure. Nessa altura é provável que um ou outro prato/copo não sobreviva. É triste, mas há algum tempo que deixamos de chorar estas perdas. O armário, ali no canto, tem uma fila de garrafas vazias, enfeitadas com rosas mortas - uns riem, outros dizem que somos parvas, outros acham triste. Nós simplesmente concordámos que elas encaixavam bem - em termos de design de interiores - com o fundo da parede azul. Por detrás da Ana Moura e dos meus pensamentos, ouço a voz da Maria, o respirar profundo da Ana, as arrumações dos vizinhos e a chuva. Cheira a incenso e a café; as minhas mãos - geladas - cheiram a laranja; e o mundo, lá fora, a chuva.
Quando afirmava que percebia os estudantes Erasmus, não fazia a mais pequena ideia do que estava a dizer. Este conforto é indescritível.

Aqui dentro não faz frio, mas as minhas mãos gostam de contrariar. Lá fora chove muito. Quem passa leva um guarda-chuva, mas eu gosto de contrariar. Vou sair, dançar no meio das folhas de outono, ficar encharcada. Vou viver 5 minutos de estupidez e, quando voltar cá para dentro, talvez ouça um "pareces parvinha". Eu vou rir e o assunto vai morrer.

Esta liberdade é indescritível.

29 de setembro de 2010

Diário de Bordo

Estou sentada no terraço da nossa casa com um bloquinho que cabe na palma da mão, cheio de breves anotações. Existe uma, entre outras tão interessantes quanto esta, que diz: Banho refrescante na Pensão Ottaviana, porque nos próximos dias talvez não tenhamos a mesma sorte.

Esta referência ao dito banho faz parte da minha (falhada) tentativa de apontar todos os episódios, anseios e pensamentos que me ocorreram nesta Road Trip - que só o é de nome, com o objectivo de lhe enaltecer o estilo. Tenho de admitir que, ao fim do primeiro dia, percebi que as palavras que ia escrevendo, sem sequer me preocupar com o sentido da frase que formavam, não faziam mais do que diminuir o valor do que realmente tinha acontecido e, portanto, desisti deste plano do bloquinho.
Talvez seja culpa dele, por ser tão pequeno.
Ou talvez seja culpa minha, por ser tão pequena - pelo menos perante tamanha experiência.

O título é ilusório.
Isto não é um Diário de Bordo. É, na melhor das hipóteses, uma analepse muito pobrezinha daquilo que foi a nosso InteRail pelo norte de Itália. Considerando que me servirei apenas da minha memória - a qual, aviso desde já àqueles que não me conhecem, não é muito diferente da de um peixe - é mais do que provável que me escapem situações cuja relevância é mais do que suficiente para serem aqui descritas. Peço desculpa. Mais vale confiarem nas minhas colegas de aventura - que, agora, às 17h15 da tarde, dormem profundamente comprovando o quão atarefados são os nossos dias aqui, em Roma - essas sim, verdadeiras contadoras de estórias, que fazem jus à nossa semana de aventura.


Sempre fui fervorosa defensora de que os sonhos são o mais poderoso propulsor da vida humana: quando tudo à nossa volta parece acontecer ao contrário daquilo que desejamos, é com o pensamento voltado para aquilo que ainda queremos fazer que somos capazes de encher a alma. Uns acompanham-nos desde sempre, outros vão surgindo em substituição daqueles que vamos concretizando. Uns mais fortes, outros menos. Quando, ocasionalmente, chegámos à altura em que vemos realizado um sonho antigo, invade-nos uma sensação, semelhante àquela das experiências, que nos fortalece todos os sentidos e nos faz sonhar ser donos de tantos outros sonhos (e tantas outras palavras escritas).

Lembro-me de, há muito (pouco) tempo atrás, parar a imaginar o dia em que sairia, de mochila às costas e partiria a descobrir novos lugares: imaginava que teria de dormir nas estações de comboios ou em bancos de jardim; imaginava-me a usar a mesma roupa durante dias seguidos e a não ter onde tomar um banho; imaginava-me a entrar na casa de banho de um café, para poder, pelo menos, lavar os dentes; visualizava-me a encontrar cidades mágicas, a cruzar-me com pessoas muito diferentes de mim, a sentar-me no meio da rua, sem nunca tirar a mochila, para descansar os pés, e as costas. Lembro-me de pensar que esse dia, em que sairia, de mochila ás costas, iria chegar, algures, no futuro.

Não sei o que se passou entretanto, mas esse dia - pelo menos um deles - chegou, e passou.

Dia 21 de Setembro de 2010 fechei a porta, atrás de mim, contra uma mochila - emprestada pelos nossos vizinhos - com meia dúzia de mudas de roupa (das quais só chegaria a usar uma ou duas), produtos de higiene básica (também usados menos vezes do que as necessárias), toalha de banho (cujo uso não vou, sequer, comentar), sapatilhas (santas sapatilhas que, apesar de me magoarem, me aqueceram os pés em tantas noites), carteira, telemóveis, um pin absorvedor de momentos, uma mini boneca com um nome estranho, muito familiar, de 2 R's e 2 M's, uma máquina fotográfica descartável e um bilhete e uma caneta muito especiais

Quando disse, há uns dias, que tínhamos trazido parte da cor e do brilho da Villa Borghese, fechada na nossa máquina fotográfica, não fazia ideia do que estava a falar.
Desta vez sim, acredito que posso dizer de boca cheia que roubámos a alma a todos os lugares que visitámos. Num total de 5 dias e uma madrugada, tirámos exactamente 2747 fotografias. Eu podia explorar toda uma sátira complexa acerca deste número (nada abusado) ou abordar, com lamentações, o facto de a máquina digital ter destruído a magia do poder de seleccionar o que era, ou não, merecedor de um registo fotográfico. Mas a verdade é que sou uma das grandes culpadas. A outra é a Ana. E tanto eu como ela gostámos de argumentar que todas as 2747 fotos são de extrema indispensabilidade. Ou isso, ou somos loucas.
Acho que não restam dúvidas quanto ao valor da nossa argumentação.

O plano que elaborei, tão detalhadamente, na noite anterior à madrugada da nossa partida, tinha como primeiro ponto: Sair de ROMA às 5h50. Dada a qualidade da rede de transportes urbanos da cidade, este ponto não se apresentava como uma dificuldade: bastava apanhar um nocturno às 4h08 (último horário disponível) que nos levasse a Termini. Como a decisão da viagem tinha sido feita no próprio dia, não houve tempo para dormir, no meio de planificações e estudos de horários e pontos de interesse nas diferentes cidades. Depois de uma directa super agitada, saímos para apanhar o dito nocturno. Como é fácil prever, dada a nossa palermice - já várias vezes relatada nesta Caixinha - perdemos o (maldito) N2, que nos trocou as voltas e ainda nos obrigou a correr - em vão.

- Apesar de todos os infortunios que nos foram acontecendo, é importante referir que a sorte, ainda que bastante disfarçada, esteve sempre do nosso lado. -

Dito isto, introduzo uma Principesco Salvador, membro da nossa tão bela Comunidade Portuguesa, que, ignorando o sono (claramente visível na sua cara) nos encaminhou, a pé, durante uns longos 30 minutos, até à estação. Mal chegámos, o meu bichinho da fotografia acordou e pedi à Ana que pegasse na maravilhosa máquina e tirasse a primeira foto. Bem, sem ser sequer necessário referir a palavra palermice (até porque se o fizer de todas as vezes em que ela é adequada, vou gastá-la, com toda a certeza), percebemos que não tínhamos trazido o cartão de memória. Nem o horário de todos os comboios italianos - grande bíblia na qual gastámos uns preciosos 5 euros.
Ora, até era possível sobreviver uma semana sem estes dois elementos, mas se, no final dos cerca de 10 minutos de reflexão acerca do que fazer para resolver a situação, tivéssemos decidido seguir viagem, provavelmente teríamos ficado presas em cidades durante mais dias do que o previsto e não teríamos tido tempo para visitar tudo o que queríamos e, pior do que isso: hoje, não existiriam as 2747 fotografias tão valiosas que vão, sem a menor dúvida, surpreender os nossos netos.
Voltámos a casa para reaver os nossos tesouros esquecidos e acabámos por apanhar o comboio à hora certa, numa estação mais próxima da nossa casa, cuja existência só foi lembrada pela Maria Inês, depois de toda esta panóplia. Enfim, palermices.
Apanhámos o comboio, dormimos durante a viagem e percebemos, imediatamente, que a (pouca) roupa (pouco) quente que tínhamos trazido, não ia ser suficiente para abrigar as nossas noites ao relento. Pela terceira vez desde que aqui estamos - verdadeiras sem-abrigo.

Chegámos a Perúgia muito cedo e encontrámos uma cidade com uma beleza natural bem mais rica do que aquela que tínhamos visto, até então, aqui em Itália.
Pequena, acolhedora, de pessoas humildes e sorridentes.

Por sugestão das minhas companheiras, guardo o resto para outra altura.
Por lealdade à minha memória de peixe, não garanto mais detalhe do que isto.

Fica a certeza: a culpa é minha, por ser tão pequena - pelo menos perante tamanha experiência.


Perúgia - 21 Setembro 2010
 

20 de setembro de 2010

Road Trip

Comprámos o nosso bilhete InterRail.
É um bilhete relativamente barato que nos permite viajar por toda a Itália durante três dias, sem limitação de destinos.
Para além do bilhete, temos umas canetas especiais que, se tudo correr bem, vão alargar esses três dias por um período de um mês.

Plano? Sair hoje às 5h50 da manhã e só voltar a Roma no próximo Domingo, dia 26 de Setembro, às 23h39. Decidimos não levar computador ou qualquer outro tipo de utensílio que não passe de um capricho. Vamos de mochila às costas, com meia dúzia de mudas de roupa e tantas sandes quanto as que conseguirmos carregar. Das 5 noites que vamos passar fora, duas vão ser feitas em viagem.

Vamos visitar Perugia, Florença, Milão, Verona, Veneza e Siena.
Estamos, agora, a investigar cada uma destas cidades para garantir que as aproveitamos ao máximo.

Gostava de descrever tudo aqui, mas temos menos de 5h para delinear um plano exequível, arranjar hosteis em 3 das cidades, recolher o máximo de informação de cada uma delas, confirmar horários de comboios, verificar localizações de estações e pontos de referência, fazer uma estimativa do dinheiro necessário, seleccionar as coisas a levar e organizá-las na tal mochila (que ainda vamos arranjar, com toda a certeza, junto dos nossos vizinhos), preparar sandes, dormir umas boas horas e sair.

O melhor é parar com isto e descrever tudo quando voltar.
Até daqui a uma semana.

19 de setembro de 2010

Homeless

Bem, ontem despedi-me em modo inglês com breves tentativas de parlare italiano.

Quase 24h depois, estou sentada no chão da casa dos nossos vizinhos, a cheirar terrivelmente mal, com uma larica bastante forte, a ouvir música que não ouvia há muito tempo, a beber chá verde bem quentinho, descalça, com uma t-shirt no lugar do vestido molhado e a querer muito ir para casa tomar um banho quentinho, vestir uma roupa lavadinha e fazer uma gigante tosta mista na nossa (ainda por estrear) tostadeira.

Quero muito, mas não posso.
À festa do João vieram, para além dos convidados, uma mão cheia de desconhecidos. Como boa Comunidade Portuguesa que somos, cantámos Imaculadas com eles e partilhámos muita da nossa cultura, quer gastronómica, quer intelectual. Ainda assim, por via das dúvidas, sentimos necessidade de fechar as portas das casas não utilizadas, coisa que normalmente não acontece.

Podia contar muitos episódios, mas a verdade é que nenhum é tão interessante quanto aquele que nos trouxe à nossa situação actual: Existem quatro chaves para as duas casas onde eu, a Ana, a Maria e a Mariana vivemos; para além de nós, a Sara e a Cláudia têm dormido lá. Somos seis, portanto, a viver naquelas duas casas. Ontem, durante a festa, nenhuma de nós se lembrou de guardar uma chave no bolso e levá-la, para todo o lado. A dada altura, era meia noite e estávamos fechadas fora de casa, sem forma de entrar, com todos os nossos documentos e dinheiro lá dentro.
Pela segunda vez, desde que chegamos a Roma, somos umas verdadeiras sem-abrigo.
Ontem era tarde para chamar o nosso senhorio, e hoje ele foi passear para fora da cidade.

Passámos a noite no chão de casa alheia, com companhia alheia; acordámos junto das restantes 7 pessoas que dormiram nesta casa, transpiradas e mal-cheirosas.
Vimos filmes, comemos o sagrado pão com Nutella, jogámos cartas, discutimos e ouvimos a chuva lá fora.

Somos sem-abrigo mal cheirosas, de tal forma mais cheirosas que o barulho das gotas grossas da chuva nos soou como a perfeita oportunidade para refrescar. Apesar das toalhas sequinhas que o Pedro e o João nos emprestaram, duvido que sobrevivamos a este dia sem uma constipaçãozinha.

'Sou mais que vosso pai!'
E não é que o João tem razão, desta vez?

18 de setembro de 2010

Modo Erasmus: On!

Num suspiro muito sossegado e pessoal: 'Porque é que Nutella tem de ser tão bom?'
A Ana é como eu: para enganar a consciência, come meia fatia de pão de cada vez. A Mariana gosta tanto de chocolate que prefere abdicar dos farináceos. Já a Maria alterna a Nutella com a manteiga e lá vai sendo a mais saudável das quatro. No final comemos sempre o 'iogurte comunitário' e combinámos que para a próxima matamos o bichinho com uma peça de fruta. O que vale é que já nos vamos conhecendo e, portanto, podemos todas descansar porque, quando nos voltar o bichinho, ninguém se vai opor à Nutella.
O nosso dia-a-dia vai-se fazendo assim: entre passeios, festas, alvoradas tardias, sessões de séries e filmes de altíssima qualidade, sessões fotográficas, pausas musicais, almoços e jantares na cantina, palermices.
Há duas semanas, chegámos a uma cidade desconhecida. Dormíamos não mais do que 6h/7h por dia, saímos do Hostel e corríamos - todo o dia - de mochila ao peito (para evitar roubos), enquanto tentávamos decifrar mapas ou indicações de italianos.
Hoje, vivemos numa cidade que vamos aprendendo a conhecer. Dormimos mais do que devíamos, saímos de casa e corremos - porque queremos apanhar a cantina aberta - de carteirinha ao ombro, enquanto tentamos decidir se havemos de esperar pelo autocarro que nos leve duas paragens mais à frente ou se vamos a pé.

É estranho, isto de dizer que vivemos aqui.
Temos a rotina, temos o conforto. Mas a rotina continua a ser uma novidade todos os dias, e o conforto é semelhante àquele que temos quando estamos de férias.

No dia 11 de Setembro, o Coliseu foi o pano de fundo da nossa primeira verdadeira aventura nocturna. Levámos comida, bebida, experiências novas e abusámos daquele lugar que já nos é sagrado.
No dia 13, a Sara juntou-se à nossa (cada vez mais unida) comunidade e transportámos o Pulp Fiction (e a cama do Pedro e do João) para outra dimensão.
No dia 16, fomos espalhar magia pela noite de Roma. Cantámos no autocarro, e fomos aplaudidos de tal forma que confiámos no nossa valor enquanto grupo coral. Os turistas da Piazza Navona não concordaram assim tanto e tudo o que conseguimos foi um pontapé no copo que improvisámos para 'os lucros' da actuação. Ainda assim, como Comunidade Portuguesa de valor que somos, resistimos: a Cláudia enfeitiçou um palhaço e, mais tarde, com uma ajuda líquida tanto ò quanto valiosa, liderámos o Karaoke.
No dia 17, quisemos ser culturais e visitámos a Villa Borghese. Acredito que trouxemos grande parte da cor e do brilho daquele lugar, fechados nas nossas fotografias. À noite, o João transformou o Pay It Foward numa comédia.
Hoje, forçámo-nos a acordar às 9h da manhã e partimos a visitar o Museo Civilità Romana.

Agora, o João faz anos e festa mudou-se cá para casa.

Modo inglês com breves tentativas de parlare italiano: on!

Ciao!
(Podia, facilmente, habituar-me a esta rotina)

13 de setembro de 2010

Roma, cidade eterna (?)

13 de Setembro de 2010

Fazem hoje, exactamente, dez dias desde que chegámos a esta cidade encantada.

Quando dei um beijinho na mão e o soprei para os amigos e família do outro lado do vidro, tive uma sensação bastante simples, nada semelhante àquela que acreditei que ia ter: senti um friozinho, fraco, (que pode perfeitamente ter sido causado pelo ar condicionado do aeroporto) e tive vontade de sorrir, dizer 'até já' e virar costas, sem medo, rumo à aventura.
Nas horas seguintes o friozinho não cresceu, nem me invadiu uma sensação de calor. Não sentia nada. Curiosidade, talvez. Admiração, também, perante as fantásticas paisagens que as cordilheiras de nuvens formavam à minha volta.
No aeroporto de Fiumicino, percebi que carregar 3 malas muito pesadas e uma outra, pelo ombro, igualmente desconfortável, seria bem mais difícil do que aquilo que me tinha parecido, umas horas antes, quando tinha treinado o exercício dentro do meu quarto e, então, senti uma outra coisa: cansaço. Desde Fiumicino até Termini - a gigantesca e centralizada estação da cidade - passaram-se aquilo que me pareceram horas, durantes as quais quase chorámos: com medo de morrer, empurradas escadas abaixo pelas nossas próprias malas; e de tanto rir, ao olhar para a nossa própria figura.

Termini. A primeira grande impressão de Roma.
É uma espécie de S.Bento (se ignorarmos proporções): estação de combóio e metro, com ligação a todos os outros transportes (autocarro e tram) que serve como ponto de referência para todos os turistas e/ou romanos.
Afinal, as ruas eram tão sujas quanto nos tinham avisado e as pessoas não tinham um aspecto simpático e afável. Não posso dizer que tenhamos tido medo, porque, na realidade, sentíamo-nos absolutamente invencíveis com todas aquelas malas e todo aquele aspecto transpirado que, efectivamente, afastava de nós qualquer tipo de ser vivo.
Ali estávamos: sózinhas, invencíveis - mas nada confortáveis - numa cidade tão grande que descobrir a saída da sua própria estação se revelava como um desafio. O próximo passo consistia em encontrar o Hostel Beautiful II onde íamos passar as duas noites seguintes enquanto procurávamos um apartamento definitivo. Tudo o que sabíamos era que o Hostel era pertíssimo da estação, mas já que encontrar a sua saída se tinha revelado uma tarefa tão complicada, decidimos que procurar o Beautiful II a pé, com as nossas 14 malas/mochilas, seria absolutamente impossível. Já diz o pai da Maria que 'quem não sabe é como quem não vê' e, por isso, corremos para um táxi e sujeitámo-nos a pagar todas e quaisquer taxas de bagagens. Enquanto a Maria e a Mariana acompanharam as nossas malas na viagem de táxi, eu e a Ana decidimos tentar a nossa sorte, poupar o dinheiro de mais um táxi e procurar o tal Hostel. Percebemos, cerca de 2 minutos depois, que talvez os 15 minutos no meio de trânsito e os 20 euros pagos ao taxista não tenham sido o gasto mais inteligente e aceitável da nossa (ainda) curta estadia.

Como adolescentes optimistas que somos, sempre acreditámos que o Hostel teria tão bom aspecto quanto aquele sugerido pelo nome. Convencemo-nos que, ao contrário de todos os outros estudantes Erasmus, o nosso único problema seria aquele relativo às malas e que, a partir de agora, tudo correria conforme planeado.
Bem, sempre fui apologista de que tudo é relativo.
Para todos os conhecedores da música Jolie, aqui fica a nossa versão:
Beautiful, és o Hostel rasca de Roma, Roma, Roma
Anda cá, Beautiful, o teu elevador mete nojo, ai mete nojo, mete nojo, mete nojo, mete nojo!
Beautiful, beautiful, beautiful,
Oh oh oh oh
Ai se não fossem as malas, se não fossem as malas, se fossem as malas..
AI, o teu elevador... mete nojo!

Portanto: quarto no 4º piso, 14 malas e um elevador com espaço para três/quatro pessoas (MUITO) apertadas e aspecto de elevador tirado de um filme altamente terrorífico, tipo The Grudge. Foi díficil, mas sobrevivemos - o cenário era positivo.
O Beautiful II é um Hostel dirigido por Marroquinos (como tantas outras coisas por aqui, aliás!) pelos quais fomos desenvolvendo carinho. A procura de apartamento revelou-se mais difícil do que aquilo que inicialmente pensámos e acabamos por prolongar a nossa estadia no Hostel rasca de Roma por mais 3 noites. Durante 5 noites, os Marroquinos foram-se apaixonando por nós e passaram a acordar-nos todos os dias às 7h da manhã para nos trazer à cama um pequeno-almoço de café com leite, sumo e Manhazito.

Só no dia 8 de Setembro, a passada quarta-feira, é que nos mudamos para o nosso apartamento definitivo: uma casa tipo bungalow, com uma única, mas ampla, divisão com cozinha, cama de casal e sofá cama e uma casa de banho. Alugámos duas, uma ao lado da outra, e abrimos a porta que permite ligação interior. Aqui, no mesmo espaço, estão alojados outros estudantes Erasmus, maioritariamente portugueses. Não se pode dizer que o preço seja adequado, mas nada aqui o é.
Durante 5 dias corremos a cidade à procura de alojamento. Entrámos em modo: affittare un'appartamento e andámos, de um lado para o outro, a parar em todas as esquinas para ler os anúncios colados nas paredes e nos postos de electricidade. Lemos dezenas, ligámos para uns quantos, vimos meia dúzia e lá acabamos por descobrir o que melhor correspondia àquilo que procurávamos. Aqui, na nossa casa, temos internet wireless, fogão, frigorífico, armários, casa de banho privativa e uma série de outros elementos que facilitam, em muito, o nosso dia-a-dia. São casinhas - amarelas e agradáveis ao olhar - com alpendre, mesa e cadeiras de madeira. Casinhas um tanto ao quanto sossegadas - aqui, numa das principais ruas de Roma - com um cão, o Dark (que, para nós, e por motivos que mais tarde explicarei, se chama Monsenhor Agostinho). São, na verdade, tão acolhedoras quanto parecem e, por isso,  podemos dizer, de boca cheia, que aqui, na nossa casa, encontramos um abrigo.
E tenho que reforçar que, ter um abrigo nesta aventura, é algo crucial.

Antes, quando eramos literalmente sem-abrigo, a internet era limitada a uns 30 minutos diários numa lavandaria perto do nosso hostel que não tinha mais do que 3 computadores funcionais para um mar de gente que precisam tanto de net quanto nós; não comíamos mais do que pizza ou sandes; acumulávamos a roupa suja em sacos de plástico que guardávamos junto da roupa lavada, de tal forma que às vezes era dificil distinguir uma da outra; andávamos perdidas dentro dos transportes públicos; acabávamos em zonas quase para além dos limites da cidade de Roma e não sabíamos dizer mais do que: 'noi siamo quattro studentesse portoghese e vogliamo affittare un'appartamento'.

Se pensar bem, metade das coisas não são muito diferentes! Mas ao fim do dia temos uma cama confortável para onde voltar.

No meio de tantas jornadas, sem rumo certo, cruzámo-nos com os maiores monumentos da cidade. Encontrámos, ao virar da esquina, o Coliseu, o Panteão, o Vaticano, a Basílica de S.Pedro e tantas outras coisas grandiosas que, aos poucos, vamos aprendendo a identificar.
Decidimos, há uns dias, que precisávamos de um spot. Um ponto de encontro ao qual voltar caso alguém se perdesse e que, estando nós numa cidade como esta, esse spot não poderia ser a nossa casa.
Optámos pelo Coliseu.
É lá que vamos, quando nos apetece descansar.
Olhar para o Colosseo faz-me sentir pequena. É incrível, a quantidade de estórias fantásticas e intemporais que podemos imaginar (visualizar, até, se deixarmos que a nossa criatividade se expanda) quando nos sentámos no muro, de cabeça erguida e olhar fixo em todos os detalhes da ruína mais monstruosa que alguma vez vi. Ali sim, Roma é uma cidade encantada e eterna. Nada suja, nada feia, nada barulhenta.

Noutro dia, chegámos à conclusão que a procura de casa foi tão complicada porque, quando viemos para cá, tínhamos ideia de contactar com o Monsenhor Agostinho, padre português numa igreja aqui em Roma e responsável pelo IPSAR (Instituto Português Santo António Roma) que, até este ano, recebeu os estudantes de Erasmus Portugueses e os ajudou a encontrar apartamento. Quando encontrámos a Via dei Portoghese, perto da Piazza Navona, percebemos que, ao contrário daquilo que o nosso espírito positivo queria acreditar, as coisas seriam um pouco diferentes do que tínhamos imaginado. O Monsenhor expressou a sua falta de vontade e disponibilidade para nos ajudar explicando que 'estava farto dos estudantes Erasmus, que só davam problemas!'. Nem a nossa carinha mais inocente convenceu o Sr. Padre a ajudar o próximo.

No dia 5 de Setembro, primeiro domingo que cá estivemos, fomos até ao Vaticano e conhecemos um padre português bem diferente daquele. O Padre Caldas, que trabalha e vive no Pontifício Colégio Português encontrou-se connosco na Praça de S.Pedro, ofereceu-nos ajuda na procura de alojamento e o melhor almoço que tivemos até então. Há dias que não tínhamos uma refeição que pudesse ser chamada de tal e, no colégio, fomos apresentadas à típica cozinha italiana: primo prato (que, para eles, é uma mera entrada) - um prato de massa que, naquele caso, era massa à carbonara; secondo prato (este sim, 'prato principal') - que no nosso caso foi frango e batatas no forno; e a sobremesa - fruta e um geladinho Cornetto. Portanto, o nosso organismo - habituado à simples fatia de pizza ou pão - quase explodiu com tanta comida.
Quando, uma horas depois, nos conseguímos levantar, rebolámos de volta até ao Hostel.
A Ana defende que esse dia não passou de um sonho. Ela acredita que adormecemos, ao sol, na Praça de S.Pedro, e que tudo o que sucedeu nesse dia não aconteceu, na realidade. Foi nesse Domingo que conhecemos a Teresa e o seu marido italiano, o Giovanni. A Teresa é uma amiga, nossa conhecida de Portugal, muito simpática, muito disponível, que nos levou a ver casas. O Giovanni, sendo italiano, ajudou-nos a compreender as conversas que, até então, só eram perceptíveis a cerca de 10%. No dia que nos decidimos por esta, o Giovanni veio connosco, ajudou-nos a regatear o preço, leu o contracto e trouxe as nossas infinitas malas. Um casal de anjos, portanto, que, segundo a Ana, são fruto da nossa imaginação.

As festas não foram muitas, ainda. Não por não as haver, mas por falta de disponibilidade da nossa parte. O ESN (Erasmus Student Network) organiza cocktails, quase diariamente, que são uma óptima oportunidade de conhecer outros estudantes de outros países que também estão cá a estudar. Até agora, conhecemos maioritariamente portugueses, mas esperamos poder descobrir tantas outras culturas que, pelo que nos parece, estão cá muito bem representadas.

Isto está bastante extenso, eu sei. Mas, ainda assim, penso que não desabafei nem 20% daquilo que realmente vivi. Não falei do Auchan, dos amigos da Mariana, da noite em frente ao Coliseu, do poker a saquetas de chá e pensos rápidos, das picadas monumentais dos mosquitos, das sestas nos transportes públicos, das fotografias artísticas, das caminhadas nocturnas que só lembramos parcialmente, das refeições caseiras, do stop e de TANTAS outras coisas.
Todas elas (incluindo as aqui relatadas), verdadeiramente impossíveis de descrever.

O que eu acho que se passa é que, aquela sensação de friozinho fraquíssima que podia, perfeitamente, ter resultado do ar condicionado do aeroporto, foi-se fazendo forte. Agora sinto tudo. Um misto de sensações. Acordo a pensar que, afinal, isto não são só uma férias e que aquele 'até já' que quis dizer não é tão breve quanto me parecia na altura. Vai-se estabelecendo uma rotina, nada monótona, nada regular, mas uma rotina. O nosso dia-a-dia agora, e nos próximos 6 meses, vai passar a fazer-se aqui, na cidade encantada. Virei as costas, de facto, e parti, rumo à aventura.
Poderoso? Muito. Assustador? Ainda mais.

Como uma amiga me aconselhou a fazer: liguei um botão, que só se vai desligar quando estiver de volta a Portugal. Talvez nem aí.

Por isso, podes acomodar-te, Roma - Cidade Eterna, sobre a tua vitória, que prometo viver-te com esta sensação de concretização que fortaleceu todos os meus sentidos e me fez sonhar ser dona de tantas outras experiências e tantas outras palavras escritas.

3 de Setembro de 2010: Aeroporto Sá Carneiro

27 de agosto de 2010

Forças do bem

Abri e fechei a página das 'novas mensagens' uma mão cheia de vezes antes de escrever o que quer que fosse. Quando finalmente a deixei aberta, assisti a uma outra batalha entre palavras escritas e palavras apagadas, saindo estas claramente vencedoras.

As palavras escritas conseguem ser bastante poderosas, mas nada podem contra o aliado incondicional das palavras apagadas - a incerteza. Ela ataca tão ferozmente que as palavras escritas sentem-se inseguras e duvidam do propósito da sua vitória. Muitas vezes, no decorrer de longos confrontos, temem perder a identidade e o (pouco) valor que ainda acreditam ter, e, movidas pelo cansaço, desistem. Vitoriosas, as palavras apagadas desfilam em folhas brancas - reluzentes, cortantes - intimidando as suas adversárias que não têm alternativa senão fugir e esconder-se. Refugiam-se onde podem ser livres e vivem lá, na esperança de um dia amadurecerem e serem capazes de vencer a incerteza.

O mesmo acontece com as experiências - aquelas que são novas e se apresentam como potenciais descobertas - ao enfrentarem um adversário cruel que, como as palavras apagadas, é desonesto. O comodismo faz-se confortável, seguro, livre do perigo do desconhecido e assusta o inimigo, enfraquecendo a sua arma mais poderosa - o desejo do conhecimento. Em todos os confrontos, é previsível que se encontre um ponto de equilíbrio, mas as duas frentes são tão fortes que esse equilíbrio é apenas aparente e, em alguma altura, uma terá de sair triunfante.

Como as palavras apagadas, o comodismo é, frequentemente, vencedor.

Ocasionalmente, o elemento (mais) fraco resiste, persiste e aniquila todo e qualquer tipo de contra-ataque do lado negro da força: as palavras escritas ignoram o facilitismo e espalham-se; as experiências vencem o medo e aventuram-se. Quando, nestas raras ocasiões, o fazer rouba lugar ao esperar, invade-nos uma sensação de concretização que fortalece todos os nossos sentidos. Sonhamos com mais palavras escritas e mais experiências!; queremos ser donos de todas elas e acreditamos que um dia assim o será.

A verdade é que, mais tarde ou mais cedo, as forças do mal - que agora se escondem, à espreita, e reestabelecem energias - voltarão a atacar e nada garante que sairão, de novo, derrotadas.

Cada palavra escrita, como cada experiência, deve ser saboreada a seu tempo. Hoje, sou dona deste desabafo e desta aventura que se avizinha. Amanhã, talvez eles não sobrevivam e, então, eu não poderei cantar esta mesma sorte. Há que glorificar a vitória das forças do bem e mostrar-lhe que vale a pena continuarem a lutar.


Roma, cidade encantada, podes acomodar-te e descansar sobre a tua vitória que prometo viver-te com esta sensação de concretização que fortaleceu todos os meus sentidos e me fez sonhar ser dona de tantas outras experiências e tantas outras palavras escritas.

27 de junho de 2010

Sabor de te carregar

Tu,
És um de sacrifício que tento levar de bom agrado.
Uma espécie de arranhão que o tempo foi sarando. Tem dias que lhe toco e é impossível ignorar o quanto arde. Já tentei escondê-lo, para que não fosse tão frequente o instinto de lhe tocar. Já lhe mexi demais, esperando habituar-me à dor. Fiz outros arranhões, para relativizar a tua imponência.
Não resultou.

Tu, és uma cor cada vez mais vaga. Cada vez mais escura.
Nunca fiz nada para que isso acontecesse. Talvez o arder do arranhão te tenha tirado o brilho. Ou a força do conforto de não te lembrar, vivo. Já não corro atrás das lembranças boas, com medo de as perder. Não corro, porque me cansa a inutilidade desse esforço. Mas e o medo?

Tu,
Foste algo de bom (?)
Não me lembro exactamente qual era a sensação, mas sei que todas as metáforas serviam. Abundavam os recursos e o floreado nas expressões. Era na altura quase tão absurda como sou hoje. Pelo menos era um absurdo fundamentado.

Dissiparam-se as formas e os contornos.
Eu, não vejo mais do que uma sombra, vestígios dela. Resta o sacrifício que, com medo do esquecimento, tento levar de bom agrado. Convenço-me de que existe um propósito. Há-de chegar o dia em que vou perceber que é mais fácil largar o peso e seguir sem ele. Estremeço. Espero, nessa altura, ser capaz de te guardar num lugar seguro onde possa visitar-te, de vez a vez, e lembrar o sabor de te carregar.

Quem és, tu, afinal?

25 de abril de 2010

Cabeça livre

- A água do mar estava...
- Já sei!
- Ai a mãe já te esteve a dizer?
- Já!
- É que estava mesmo...
- Oh pai, já sei!
- É por isso que eu adoro ir para a praia nesta altura!
- Oh pai!
- Não estava quase ninguém! E a água, a água estava...
- Ai, eu já disse que já sei!!
- Então e esses livros? São sobre quem?
- Norton de Matos.
- São bastante antigos. Onde arranjaste?
- Biblioteca de Letras.
- Hum. Cuida bem deles. O mar nesta altura...

A minha casa nem é muito quente. Estar assim, de top e calções, até me dá algum frio. Não me custa pensar, se conseguir reduzir o meu campo de visão a este ecrã.
Mas a minha mãe, ali no jardim, com a cabeça livre e o biqini desapertado atrás para não ficar marca, está a dificultar a minha missão.
Deitou-se na relva, que o meu pai cortou de manhã, e está ali, às 15h, sem medo dos raios ultravioleta. Confia, certamente, no poder regenerativo das suas células ou na magia dos cremes aftersun. Tem tanto calor que amarrou o cabelo e foi buscar um chapéu.
A minha irmã de 12 anos, que até agora tinha estado muitíssimo ocupada a ver as séries do Disney Channel, juntou-se à paródia com uma bola de voléi e os pés descalços.
Olho para as duas e consigo vê-las a espreitar cá para dentro com um olhar cruel. Olham-me, levantam o canto superior direito das suas bocas, e voltam às suas vidas, preocupadas com o sol e com a bola colorida que costumava ser a minha companhia de fins de semana. Cada uma no seu mundinho, lá trocam uma palavra, ou um sorriso de cumplicidade, claramente pensada para me derrubar.
A natureza acordou para me irritar. Iluminada. E a minha família aliou-se a ela.
Nem os pássaros que voam contra a janela da minha cozinha se deixam abater. Caem, levantam, e seguem contentes, com o vento.

A minha irmã decidiu atacar em pico para cima da minha mãe que, noutra altura, ficaria bastante aborrecida, mas a Natureza está tão iluminada e elas têm a cabeça tão livre que só conseguiram rir.

- Não te apetece ir à praia? Está tanto calor!

(Socorro!)

20 de março de 2010

Folhas de papel

Hoje acordei com uma dor estranha no peito. Não sei bem se "dor" é a palavra certa para aquilo que senti (e sinto, tantas outras manhãs).
Hoje, como ontem, acordei com uma sensação desagradável: uma espécie de arrepio incomodo que, a cada respiração prolongada, sobe até os meus olhos e os faz brilhantes. É um arrepio com um poder incrível! Traz-me recordações - vagas recordações - que ameaçam perder contornos. Vêm todas, em forma de desenhos, fechadas numa caixa escura, sem qualquer tipo de organização (crono)lógica. São só desenhos daquilo que vivi, desenhos daquilo que fui. Quando o arrepio (de poderes realmente incríveis) mos traz, eu estremeço. Fico assustada. Tenho medo. (Tanto!) Medo de ficar perdida dentro dessa caixa que me mostra, constantemente, que esta pessoa, acabada de acordar, não sou eu. É uma voz que grita de uma maneira tão forte que acabo por acreditar no que me diz: esta não sou eu.
Perco aquilo que me parecem horas a vasculhar em rascunhos: encontro as minhas pessoas e os meus lugares; encontro momentos de insignificante importância; consigo ver-me, a mim, presa nesses momentos - totalmente presa em histórias que já tiveram o seu fim. Sinto-me louca no meio de tanta confusão. Passam-se aquilo que me parecem horas até que me canso de lutar contra folhas de papel e respiro, encho o peito e encho o olhar.
Levanto-me, guardo os desenhos, calo a voz, fecho a caixa, escondo-a e saio à rua. Saio para uma rua esburacada que não é a minha. Custa-me o dia, passado nessa rua interminável que pouco me diz. Vejo pessoas. Consigo cheirá-las, consigo ouvi-las. Eu consigo senti-las, saber que também elas são minhas e fazem parte dos meus lugares - as minhas pessoas e os meus lugares de hoje. Se não fosse a outra voz... Se não fosse a outra voz (quase sempre) gritante, eu até saberia quem sou.
Ridículo. Ridículo este arrepio. Ridícula eu que deixo que ele me engane e me roube as certezas de quem sou.
Ridículo.

24 de janeiro de 2010

Anda comigo

'Anda comigo ver os aviões, levantar voo a rasgar as nuvens... Rasgar o céu.'
Anda comigo para o meu jardim. Podemos ficar sentados na relva por cortar, calados, nem precisamos de trocar olhares! Ou então podemos correr e eu salto para o teu colo (mesmo sabendo que o mais provável é que caiamos os dois).
Anda comigo para o meu jardim, aproveitar o sol da manhã e o cheirinho dos campos de trigo. Podemos mexer nas folhas secas (ou no cabelo um do outro). Podemos cantar músicas de amor ou, se preferires, aquelas mais barulhentas que me ensinaste a gostar.
Anda comigo para o meu jardim e vamos ficar uma eternidade a olhar para os nossos pés, descalços e entrelaçados (como a nossa alma). Vamos ficar no meu jardim, tão imenso como o céu e as nuvens. Vamos ficar os dois. Hoje, pelo menos hoje. Amanhã podes fugir do nosso paraíso. Mas hoje... Hoje vem comigo e traz o carinho que sempre guardaste (só para mim).

15 de janeiro de 2010

Resta-nos a cumplicidade do olhar

Hoje, continuo sentada no mesmo sofá que há 2 dias atrás. Aliás, faz uma semana (talvez até faça mais do que isso!) que não saio deste sofá. Aqui faz-se de tudo: ouve-se 'fon fon fon', canta-se a vozes, discutem-se dores de barriga ou dores de coração, dão-se gargalhadas (e, não querendo quebrar o equilíbrio, também se dispensam uns minutinhos para as lágrimas!). Há tempo para tudo (menos para o que é preciso). A sensação que nos dá (a mim e às minhas companheiras de aventura) é que o mundo se faz aqui dentro e, lá fora, só o vento é que corre, sozinho, abandonado pelo tempo, que se fechou connosco.

Neste lugar, quente, transpirado, com um cheiro intenso que resultou do nosso respirar apressado, o tempo, ao contrário do que acontece lá fora, foge-nos das mãos e, num instante, a frescura das nove da manhã transforma-se em estupidez de meia noite.
De vez em quando surge uma cara nova, alegre, que traz consigo balões de arco-íris e nos ilumina a aura. Mas essa pessoa acaba por sair, levando consigo o que sobra de toda a cor que trazia.

A nós, fervorosas adeptas da força da vontade, resta-nos o silêncio, a cumplicidade do olhar.
E que felizes somos com ela.

13 de janeiro de 2010

Palavras soltas

Estou numa rua estreita e comprida. O chão é feito de paralelos velhos, desgastados pelo tempo e pelo uso; são paralelos tão calcados e vividos que a maioria deles já não tem lugar na calçada.
Se não fosse o vento forte, quente, seco, a correr à minha frente, e a intensidade do sol de meio dia a desenhar pintinhas pretas que flutuam na paisagem, eu até me sentiria confortável. A minha vontade diz-me que eu devia deitar-me e partilhar o meu cansaço com todas estas pedras, contar-lhes o meu sufoco. Se não fosse o sol de meio dia, e o vento seco, talvez o fizesse. Desejei encontrar uma sombra, ou uma brisa onde pudesse deixar-me cair e falar, falar. Só encontrei uma folha branca, e um lápis partido com a ponta mal afiada. Pensei: "Nada melhor!"
Não é que me falte a alma, ou a literacia.
Sinto as palavras confusas; a tentarem, desesperadamente, fugir da prisão em que as guardo. Sinto-as cansadas, como se não aguentassem mais viver no meio de tanta tralha e tantas histórias ilegíveis. Correm, gritam, (Vivem numa negra euforia) combatem-se, lutam pelo seu lugar na liderança deste imaginário sombrio. E quando uma supera todas as outras, não tardam os movimentos revolucionários que se mostram descontentes e certos do seu direito de implementar os seus valores. A minha cabeça é um campo de batalhas - não diria sangrentas - mas um campo de fervorosas batalhas entre ideologias de extremos opostos altamente poderosos e manipuladores.
Não escrevi aquela folha para ninguém. Para mim, (talvez).

Uma palavra, outra palavra... Se pelo menos elas fizessem sentido.