20 de novembro de 2010

Liberdade inquestionável

Fui - mais uma vez - vencida pelas palavras apagadas. Acredito, verdadeiramente, que as forças do mal se alimentaram da minha preguiça e me transformaram numa sombra - viva, mas sem voz.
Enquanto sombra, não fui capaz de reabrir esta caixa de arrumos. Sabia que aquela forma muda de mim me impediria de fazer justiça a tudo o que os meus diferentes sentidos foram - e vão, continuamente - registando. Muitas vezes tentei gritar, mas custava-me o esforço - inútil. Ficava zangada, desiludida por não ser uma destemida guerreira das forças do bem, até ao dia em que decidi desculpar-me: não tenho culpa que me tenham roubado a voz.

Cobarde.
Fui cobarde e apática; deixei-me levar pelo tempo - que correu.

A Ana diz que nestas alturas, em que lhe falha a voz, visita o seu espaço frequentemente, na esperança que ele se actualize sozinho. Acho que foi exactamente isso que eu fiz - mentalmente. Esperei que os meus pensamentos, e todas as experiências em que se baseiam, se organizassem por si. Agora, que ganhei coragem para cá vir dar uma espreitadela, descobri não mais do que uma caixa poeirenta - aparentemente vazia, abandonada, afogada em sujidade.
Pesa-me a consciência.
Coro de vergonha.

Hoje é 20 de Novembro de 2010. Amanhã fazem precisamente dois meses desde que saímos com a mochila às costas; daqui a 13 dias: três meses desde que pus os pés na Cidade Eterna; em menos de um mês volto à Cidade das Pontes para as férias de Natal. Penso sobre isto (regularmente) e estremeço: dá-me a sensação (não muito agradável) que, entretanto, se passou uma vida inteira; vejo, aqui nesta casa, uma realidade nova - revitalizante - que me vai escapando pelas mãos, enquanto lhe toco, de leve, à espera de conseguir agarrá-la.

Os dias que passamos a dormir em viagens de comboio ou em bancos de estação já lá vão há muito tempo e quanto mais penso neles, mais distantes me parecem. Tento descrevê-los, mas as peripécias já me vêm com menos detalhe; surgem-me as imagens, mas até essas já me aparecem um tanto ou quanto desfocadas. Quando, daqui a muitos anos, vier procurar relatos dessa aventura, vou lamentar e ter uma vontade desmedida de matar a minha preguiça (e a minha memória de peixe). Valem-me as 2747 fotografias e, essencialmente, vale-me a persistência da Maria, que soube vencer o facilitismo e contou - com bastante minucia - duas mãos cheias de estórias.

Sempre acreditei perceber os estudantes Erasmus: aqueles que cantam aos ventos como a experiência os fez crescer; ou como lhes custa voltar à rotina da vida normal. Acreditei que os percebia, mas a verdade é que não fazia a mais pequena ideia.
Estou na minha sala, da minha pequena casa. Da janela consigo ver a traseira da vivenda do senhorio, toda ela em vidro; vejo meia dúzia de árvores - uma delas cheiinha de romãs, e, lá ao fundo, a sebe de arbustos que delimita o espaço; no parapeito da nossa janela estão duas embalagens de detergentes que usamos para lavar a roupa e entre os postes que suportam o alpendre, cordas - com um (ligeiro) cheiro a cavalo - que improvisamos como estendal. Chove.
Cá dentro não faz frio - talvez seja do calor humano, ou do café e torradas que aqueci há uns minutos. Um estranho diria que está tudo um pouco desarrumado... um estranho; porque este é verdadeiramente o nível máximo de organização que conseguimos manter. Há um monte de louça por lavar e, segundo me diz a experiência, é assim que aquela banca vai ficar, pelo menos até que, por necessidade, alguém se aventure. Nessa altura é provável que um ou outro prato/copo não sobreviva. É triste, mas há algum tempo que deixamos de chorar estas perdas. O armário, ali no canto, tem uma fila de garrafas vazias, enfeitadas com rosas mortas - uns riem, outros dizem que somos parvas, outros acham triste. Nós simplesmente concordámos que elas encaixavam bem - em termos de design de interiores - com o fundo da parede azul. Por detrás da Ana Moura e dos meus pensamentos, ouço a voz da Maria, o respirar profundo da Ana, as arrumações dos vizinhos e a chuva. Cheira a incenso e a café; as minhas mãos - geladas - cheiram a laranja; e o mundo, lá fora, a chuva.
Quando afirmava que percebia os estudantes Erasmus, não fazia a mais pequena ideia do que estava a dizer. Este conforto é indescritível.

Aqui dentro não faz frio, mas as minhas mãos gostam de contrariar. Lá fora chove muito. Quem passa leva um guarda-chuva, mas eu gosto de contrariar. Vou sair, dançar no meio das folhas de outono, ficar encharcada. Vou viver 5 minutos de estupidez e, quando voltar cá para dentro, talvez ouça um "pareces parvinha". Eu vou rir e o assunto vai morrer.

Esta liberdade é indescritível.