29 de setembro de 2010

Diário de Bordo

Estou sentada no terraço da nossa casa com um bloquinho que cabe na palma da mão, cheio de breves anotações. Existe uma, entre outras tão interessantes quanto esta, que diz: Banho refrescante na Pensão Ottaviana, porque nos próximos dias talvez não tenhamos a mesma sorte.

Esta referência ao dito banho faz parte da minha (falhada) tentativa de apontar todos os episódios, anseios e pensamentos que me ocorreram nesta Road Trip - que só o é de nome, com o objectivo de lhe enaltecer o estilo. Tenho de admitir que, ao fim do primeiro dia, percebi que as palavras que ia escrevendo, sem sequer me preocupar com o sentido da frase que formavam, não faziam mais do que diminuir o valor do que realmente tinha acontecido e, portanto, desisti deste plano do bloquinho.
Talvez seja culpa dele, por ser tão pequeno.
Ou talvez seja culpa minha, por ser tão pequena - pelo menos perante tamanha experiência.

O título é ilusório.
Isto não é um Diário de Bordo. É, na melhor das hipóteses, uma analepse muito pobrezinha daquilo que foi a nosso InteRail pelo norte de Itália. Considerando que me servirei apenas da minha memória - a qual, aviso desde já àqueles que não me conhecem, não é muito diferente da de um peixe - é mais do que provável que me escapem situações cuja relevância é mais do que suficiente para serem aqui descritas. Peço desculpa. Mais vale confiarem nas minhas colegas de aventura - que, agora, às 17h15 da tarde, dormem profundamente comprovando o quão atarefados são os nossos dias aqui, em Roma - essas sim, verdadeiras contadoras de estórias, que fazem jus à nossa semana de aventura.


Sempre fui fervorosa defensora de que os sonhos são o mais poderoso propulsor da vida humana: quando tudo à nossa volta parece acontecer ao contrário daquilo que desejamos, é com o pensamento voltado para aquilo que ainda queremos fazer que somos capazes de encher a alma. Uns acompanham-nos desde sempre, outros vão surgindo em substituição daqueles que vamos concretizando. Uns mais fortes, outros menos. Quando, ocasionalmente, chegámos à altura em que vemos realizado um sonho antigo, invade-nos uma sensação, semelhante àquela das experiências, que nos fortalece todos os sentidos e nos faz sonhar ser donos de tantos outros sonhos (e tantas outras palavras escritas).

Lembro-me de, há muito (pouco) tempo atrás, parar a imaginar o dia em que sairia, de mochila às costas e partiria a descobrir novos lugares: imaginava que teria de dormir nas estações de comboios ou em bancos de jardim; imaginava-me a usar a mesma roupa durante dias seguidos e a não ter onde tomar um banho; imaginava-me a entrar na casa de banho de um café, para poder, pelo menos, lavar os dentes; visualizava-me a encontrar cidades mágicas, a cruzar-me com pessoas muito diferentes de mim, a sentar-me no meio da rua, sem nunca tirar a mochila, para descansar os pés, e as costas. Lembro-me de pensar que esse dia, em que sairia, de mochila ás costas, iria chegar, algures, no futuro.

Não sei o que se passou entretanto, mas esse dia - pelo menos um deles - chegou, e passou.

Dia 21 de Setembro de 2010 fechei a porta, atrás de mim, contra uma mochila - emprestada pelos nossos vizinhos - com meia dúzia de mudas de roupa (das quais só chegaria a usar uma ou duas), produtos de higiene básica (também usados menos vezes do que as necessárias), toalha de banho (cujo uso não vou, sequer, comentar), sapatilhas (santas sapatilhas que, apesar de me magoarem, me aqueceram os pés em tantas noites), carteira, telemóveis, um pin absorvedor de momentos, uma mini boneca com um nome estranho, muito familiar, de 2 R's e 2 M's, uma máquina fotográfica descartável e um bilhete e uma caneta muito especiais

Quando disse, há uns dias, que tínhamos trazido parte da cor e do brilho da Villa Borghese, fechada na nossa máquina fotográfica, não fazia ideia do que estava a falar.
Desta vez sim, acredito que posso dizer de boca cheia que roubámos a alma a todos os lugares que visitámos. Num total de 5 dias e uma madrugada, tirámos exactamente 2747 fotografias. Eu podia explorar toda uma sátira complexa acerca deste número (nada abusado) ou abordar, com lamentações, o facto de a máquina digital ter destruído a magia do poder de seleccionar o que era, ou não, merecedor de um registo fotográfico. Mas a verdade é que sou uma das grandes culpadas. A outra é a Ana. E tanto eu como ela gostámos de argumentar que todas as 2747 fotos são de extrema indispensabilidade. Ou isso, ou somos loucas.
Acho que não restam dúvidas quanto ao valor da nossa argumentação.

O plano que elaborei, tão detalhadamente, na noite anterior à madrugada da nossa partida, tinha como primeiro ponto: Sair de ROMA às 5h50. Dada a qualidade da rede de transportes urbanos da cidade, este ponto não se apresentava como uma dificuldade: bastava apanhar um nocturno às 4h08 (último horário disponível) que nos levasse a Termini. Como a decisão da viagem tinha sido feita no próprio dia, não houve tempo para dormir, no meio de planificações e estudos de horários e pontos de interesse nas diferentes cidades. Depois de uma directa super agitada, saímos para apanhar o dito nocturno. Como é fácil prever, dada a nossa palermice - já várias vezes relatada nesta Caixinha - perdemos o (maldito) N2, que nos trocou as voltas e ainda nos obrigou a correr - em vão.

- Apesar de todos os infortunios que nos foram acontecendo, é importante referir que a sorte, ainda que bastante disfarçada, esteve sempre do nosso lado. -

Dito isto, introduzo uma Principesco Salvador, membro da nossa tão bela Comunidade Portuguesa, que, ignorando o sono (claramente visível na sua cara) nos encaminhou, a pé, durante uns longos 30 minutos, até à estação. Mal chegámos, o meu bichinho da fotografia acordou e pedi à Ana que pegasse na maravilhosa máquina e tirasse a primeira foto. Bem, sem ser sequer necessário referir a palavra palermice (até porque se o fizer de todas as vezes em que ela é adequada, vou gastá-la, com toda a certeza), percebemos que não tínhamos trazido o cartão de memória. Nem o horário de todos os comboios italianos - grande bíblia na qual gastámos uns preciosos 5 euros.
Ora, até era possível sobreviver uma semana sem estes dois elementos, mas se, no final dos cerca de 10 minutos de reflexão acerca do que fazer para resolver a situação, tivéssemos decidido seguir viagem, provavelmente teríamos ficado presas em cidades durante mais dias do que o previsto e não teríamos tido tempo para visitar tudo o que queríamos e, pior do que isso: hoje, não existiriam as 2747 fotografias tão valiosas que vão, sem a menor dúvida, surpreender os nossos netos.
Voltámos a casa para reaver os nossos tesouros esquecidos e acabámos por apanhar o comboio à hora certa, numa estação mais próxima da nossa casa, cuja existência só foi lembrada pela Maria Inês, depois de toda esta panóplia. Enfim, palermices.
Apanhámos o comboio, dormimos durante a viagem e percebemos, imediatamente, que a (pouca) roupa (pouco) quente que tínhamos trazido, não ia ser suficiente para abrigar as nossas noites ao relento. Pela terceira vez desde que aqui estamos - verdadeiras sem-abrigo.

Chegámos a Perúgia muito cedo e encontrámos uma cidade com uma beleza natural bem mais rica do que aquela que tínhamos visto, até então, aqui em Itália.
Pequena, acolhedora, de pessoas humildes e sorridentes.

Por sugestão das minhas companheiras, guardo o resto para outra altura.
Por lealdade à minha memória de peixe, não garanto mais detalhe do que isto.

Fica a certeza: a culpa é minha, por ser tão pequena - pelo menos perante tamanha experiência.


Perúgia - 21 Setembro 2010
 

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